Sempre vivi num cais, vejo as pessoas embarcar e desembarcar, vejo os pescadores a pescar, passeio ao longo da costa, oiço as ondas a bater, observo a espuma a formar-se e desaparecer, espero, espero e raramente daqui saio.
Um dia avistei ao longe um barco, cheio de vida, e pela primeira vez vi-me tentada a embarcar, e embarquei sem pensar. Era-me desconhecido, não sabia de onde vinha nem para onde ia, mas mal entrei descobri que o sabia de cor, fazia parte de mim sem nunca o ter visto. As expectativas eram poucas, mas conforme o barco foi navegando, ao afastar-me da costa, foi-me esquecendo que um dia habitei aquele cais, sentia que aquele barco sempre fora a minha casa, dei tudo como certo, as expectativas não eram muitas, eram todas, ao contrário das do "eu" que embarcou.
De repente naufraguei, simplesmente naufraguei, a última coisa que eu esperava aconteceu. Eu sabia nadar, quase tão bem como um peixe, mas tal como os peixes ficam impunes quando apanhados nas redes, eu fiquei impune ao naufrágio, o efeito surpresa retirou-me tudo, quase me afoguei, cheguei a ir ao fundo, cheguei a deixar-me levar, mas acabei por vir ao cimo respirar, acabei por resistir, eu tinha de resistir, havia ainda tudo por viver, tudo por contar.
Apoiava-me nas bóias e destroços que iam passando, não demoravam muito tempo a aparecer, só para não me deixar afogar, só para me fazer acreditar, eu é que não acreditava no certo, mas sim que o barco se voltaria a construir, e que eu ia continuar a viagem, como se de um sonho acordasse, como se de um pesadelo se tratasse. Mas os frio no corpo era muito, o cansaço nas pernas era imenso, e por vezes a esperança de que o comandante do barco me ia encontrar e levar para terra segura, desaparecia. Eu cega de medo e desespero não via mais nenhuma solução, esquecia-me que sabia nadar.
O comandante nunca veio, mandou apenas botes salva-vidas que acabavam por afundar. Dei quase tudo de mim, mas acabei por me lembrar que sabia nadar, eu ainda sabia nadar, lembrei-me disso quando ao longe vi a luz de um farol, ao longe, muito longe, lá na costa que eu me tinha esquecido ser a minha casa.
Alguém o acendeu, alguém sem saber que eu estava em alto mar, alguém me ajudou, e só por isso eu tinha de nadar, tinha de lhe agradecer, tinha de o fazer saber, que tinha salvo uma vida, recuperado uma alma, e por isso nadei, nadei, ignorando a corrente forte que me fazia recuar, finalmente senti a areia nos pés, cheguei à praia, pisei a costa, guardei num cofre o pequeno pedaço de casco que trouxe comigo, para nunca me esquecer que um dia fiz aquela viagem.
fui procurar o alguém do farol, encontrei-o e agradeci, voltei a agradecer. Mas ele fingiu não se importar, fingiu ser-lhe indiferente, mas era mais forte do que ele, ele tinha ficado feliz por saber que eu estava ali, por saber que me tinha salvo, mas fingia que não, fingia, fingia muito. Contudo gostava de me ouvir, gostava de estar ali comigo, gostava de saber que eu lhe era eternamente grata, mas não o demonstrava, era orgulhoso, talvez, ainda não descobri o porque de não o ter admitido. Mas esse orgulho ou lá o que fosse, foi fazendo com que eu deixasse de ter tanto que lhe contar, foi fazendo que ele deixasse de gostar tanto de me ouvir, passei a ter dias sozinha naquele cais, voltei a ouvir apenas as ondas do mar.
De tantos momentos a só, dei conta que um certo pescador ali pescava diariamente, só agora tinha dado conta, só agora me tinha apercebido que todos os dias me dava os bons dias, ou talvez só agora ele o fizesse. Mas para mim era apenas um pescador, que acordava bem-disposto, o que o tornava simpático. Não com o tempo, mas sim muito rapidamente dei por mim a sentir falta de tal saudação, dei por mim a não lhe dizer só bom dia, dei por mim a gostar de tal companhia, dei conta que pensava no que ele dizia e o queria ali comigo, para mim. Acabando por me deixar ir, sai daquele cais uma vez, com aquele pescador, e nunca mais foi um pescador, mas sim o pescador.
Eu continuo no cais, o farol continua no meio das mesmas dunas, o barco continua em alto mar, o pedaço de casco dentro do cofre, bem guardo, e o pescador de vez em quando vem à pesca, o farol acende como um flash fotográfico e eu espero, espero sobretudo por mim, espero que a vida me surpreenda, como tem feito, espero e oiço as ondas o mar, sinto a brisa na cara, cheira-me a mar, cheira-me bem.
*BEIJINHOS*
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